Da janela do atelier, no seu apartamento no último andar de um prédio no centro de Viseu, vê o primeiro local onde existiu. Rosário Pinheiro nasceu em 1988 no Hospital de São Teotónio, edifício majestoso que é hoje uma pousada histórica de charme. A cidade e o ano em que nasceu estão impressos no cartão de visita em que Rosário se apresenta como ilustradora, apesar de não se resumir a uma profissão – é também cozinheira profissional. A designer acrescenta ainda que “cresceu 4 cm aos 23 anos”. A estranheza da afirmação inibe muitas questões mas não deixa de ecoar no nosso pensamento. Talvez seja essa a intenção de Rosário Pinheiro, a de fazer pensar quem consigo se cruza. A explicação está na cirurgia que lhe foi imposta devido a uma grave escoliose, cirurgia que lhe permitiu crescer os consideráveis 4 cm, mas a verdade é que aos 30 anos continua a crescer.
Exemplo disso é a exposição “Uma menina não” que aconteceu pela primeira vez em Julho de 2018 em Viseu nos Jardins Efémeros, um projeto interdisciplinar que teve nessa edição como fio condutor o corpo. Numa lógica que Rosário Pinheiro não aceita, o corpo não pertence à mulher, não sem cumprir certas regras. Daí a linguagem irónica e desafiadora que imprime às ilustrações que faz a frases como uma menina não assobia, uma menina não anda sozinha na rua, uma menina não diz palavrões, uma menina não pode seduzir, uma menina não…
A exposição teve a sua segunda edição no Tribunal Judicial de Santo Tirso no âmbito das comemorações do Dia Internacional pela Eliminação da Violência Contra as Mulheres que se celebra a 25 de novembro. Numa iniciativa promovida conjuntamente pela Câmara Municipal de Santo Tirso, a Rede Social e a Irmandade e Santa Casa da Misericórdia de Santo Tirso, “Uma menina não” foi inaugurada a 23 de novembro e manteve-se até 7 de dezembro, com entrada gratuita. 50% do valor dos trabalhos reverteu para a Casa Abrigo para Vítimas de Violência Doméstica da Irmandade e Santa Casa da Misericórdia de Santo Tirso.
Num tempo em que se impõe ouvir as mulheres, Rosário Pinheiro permite-o de forma irrepreensível, já que as frases ilustradas são as respostas dadas por meninas/mulheres entre os 15 e os 60 anos, acolhidas na Casa Abrigo de Santo Tirso, à pergunta “o que é que já te disseram que não podias fazer só por seres menina/mulher?”, conduzindo à reflexão sobre as infinitas regras que são impostas à mulher só porque o é e à problemática das desigualdades de género. E mais do que a reflexão, Rosário pretende uma mudança de paradigma porque, na sua perspetiva, não há nada que uma menina não possa só por ser menina.
As frases ilustradas, que Rosário reuniu num bloco pequeno, pouco maior que a palma da sua mão, tornaram-se grandes com a expressividade que lhes conferiu. Todas elas foram representadas por desenhos que o lápis na mão esquerda de Rosário traçou quer no papel quer em panos de linho. A tinta de água para o papel e os acessórios têxteis para o linho fizeram o resto, culminando em 26 peças que conferiram uma nova dinâmica à casa da Justiça. Durante 2 semanas aquelas paredes fizeram-se de desenhos e de arte, como a parede do atelier de Rosário que não tem uma obra sua, o que se poderia estranhar, mas que lhe pertence e lhe diz respeito.
No espaço onde se cultiva a Justiça, a exposição permitiu a quem a visitou questionar o que precede tantas injustiças. Como tantas coisas na vida da designer, o caminho que trilha não é óbvio mas percorre a lógica da arte como pensamento e intervenção. Afinal, Rosário Pinheiro só se sente realizada quando as suas ilustrações vão para lá de um rasgo criativo.
Voltar ao topo